Educação Infantil – novas fronteiras

São Paulo – Paulo Chaves estava preocupado naquele 16 de julho de 2015. Sem trabalho já havia seis meses, ele tinha ouvido rumores de crianças raptadas por gente que entrava nas casas fingindo fazer uma pesquisa com os pequenos. Por isso ficou desconfiado quando soube que a agente Cláudia Sabará havia estado em sua casa dizendo que gostaria de brincar com seu filho Miguel, de 1 ano e 5 meses.
Também moradora de Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, com mais de 50.000 habitantes, dos quais cerca de 4.000 com até 3 anos de idade, Cláudia havia entrado para um time da Universidade de São Paulo responsável por uma pesquisa. O objetivo era medir em crianças de 1 a 3 anos de idade o impacto de visitas quinzenais nas quais agentes como Cláudia iriam incentivar, por cerca de 12 meses, a interação entre os bebês e os adultos responsáveis por seu cuidado. Um teste feito no começo para medir o estágio de desenvolvimento da criança seria comparado com outro ao final.
Vestindo um jaleco branco e com um saco de brinquedos à mão, Cláudia sentou no sofá da sala na casa de Paulo para esclarecer as dúvidas. Repetiu o que já havia dito à mãe da criança. Falou sobre o projeto realizado em comunidades carentes da zona oeste de São Paulo, explicou que os brinquedos eram feitos de material reciclável e disse que a meta de tudo aquilo era melhorar o desenvolvimento de seu filho. Foi nesse ponto que Paulo perguntou: “É possível obter algum sucesso morando num bairro como o nosso?”
A pergunta sobre o futuro do filho tinha como pano de fundo sua história. Morador de Paraisópolis desde que chegou do Pará, em 1996, Paulo diz que tentou se aprimorar. Fez vários cursos — de primeiros socorros, procedimentos operacionais, manutenção de microcomputadores… — e montou no piso acima da sala uma biblioteca com livros que foi achando na rua e ganhando de amigos. Apesar dos esforços, sente que nunca conseguiu voar alto. Começou a trabalhar entregando marmitex, foi faxineiro e, quando chegou ao ápice como auxiliar de almoxarifado, foi demitido.
De julho de 2015 a maio de 2016, EXAME acompanhou mensalmente as visitas de Cláudia a três crianças da comunidade. Ouvimos ao longo desses meses cerca de 40 especialistas em primeira infância. A cientistas, economistas, políticos e pesquisadores, fizemos o mesmo questionamento: as visitas domiciliares podem mesmo ajudar crianças de bairros pobres a ter sucesso na vida? A resposta a essa questão interessa a todos os brasileiros: de pais e mães a empresários preocupados com a qualidade da mão de obra.
Com o lançamento, no começo de outubro, do Criança Feliz, o questionamento ganhou uma dimensão maior. O programa de visitação do governo federal tem como meta atingir, ao longo dos próximos anos, cerca de 4 milhões de crianças do Bolsa Família de zero a 3 anos de idade. O governo não vai contratar profissionais de ensino para atender as crianças. Serão agentes como Cláudia que cuidarão do que está sendo considerado pela ciência a nova fronteira da educação.
Não se trata de educação no sentido escolar — os pequeninos vão, apenas, brincar. Mas esse período dos três primeiros anos de vida é hoje visto como a base da formação do capital humano. Quanto mais pesquisadores de diferentes áreas tentam entender como desenvolvemos as habilidades necessárias para uma vida adulta bem-sucedida, mais eles focam o período da primeira infância. Pode parecer paradoxal: algumas das maiores lições da vida nossos filhos aprendem em casa, quando mal sabem falar.
A resposta da ciência
Ao ouvir a pergunta do pai de Paraisópolis, Jack Shonkoff, professor de medicina e diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard, disse que andava pensando muito sobre aquele assunto. Em sua sala localizada a poucas quadras do campus de Harvard, e onde mal cabem uma mesa, duas cadeiras e uma pequena estante de livros, Shonkoff disse que um bom programa voltado para o desenvolvimento infantil não é uma imunização contra a pobreza. “Mas um bom programa de visitação irá ajudá-las a desenvolver as habilidades necessárias para aproveitar as oportunidades, se elas surgirem”, afirmou.
Ele justificou sua resposta dizendo que há uma revolução em curso na medicina. Nas últimas duas décadas, progressos na área da neurociência têm revelado detalhes do funcionamento cerebral. O cérebro se desenvolve num processo contínuo. O período mais ativo, porém, acontece nos primeiros anos, quando de 700 a 1 000 novas conexões neurais são formadas por segundo. São esses bilhões de ligações que permitem a rápida comunicação entre as várias partes do cérebro, cada uma com uma função.
Uma região em particular, o córtex pré-frontal, chama a atenção. Ele é o responsável pelos processos mentais que nos permitem desenvolver habilidades como planejar, executar uma tarefa com atenção e memorizar uma informação para usá-la mais adiante — justamente as bases do aprendizado. Embora os cientistas já soubessem da importância do córtex pré-frontal há muito tempo, novas pesquisas permitiram que descobrissem os circuitos cerebrais responsáveis pelas habilidades.
Os cientistas costumam comparar esses processos mentais com uma torre de controle num grande aeroporto. Como um operador de tráfego aéreo, o cérebro precisa priorizar tarefas, evitar distrações e controlar impulsos. As crianças não nascem com essas habilidades — conhecidas como funções executivas. Elas nascem com a capacidade de aprendê-las. É nesse ponto que entram os adultos.
“Se as pessoas responsáveis por cuidar da criança não a estimulam desde o início, deixando que passe o dia inteiro na frente de uma tela de TV ou celular, ela provavelmente terá desvantagens quando entrar na escola, em comparação com uma que foi estimulada. Isso quer dizer mais trabalho para os professores no futuro”, diz Shonkoff.
Mas pode ser muito pior do que isso. Quando a criança é negligenciada ou maltratada, a comunicação entre o córtex pré-frontal e as outras regiões do cérebro é afetada e problemas de desenvolvimento e comportamento são registrados. Um dos casos mais extremos é o de crianças com estresse tóxico. Criadas num ambiente sem rotina, inseguro emocionalmente ou vítimas de violência, elas perdem a capacidade de lidar com frustrações.
As pessoas reagem de diferentes maneiras quando batem na porta de sua casa à tarde e de madrugada. O normal é que apenas o chamado fora de hora gere preocupação. Quem sofre de estresse tóxico, porém, sente que toda batida na porta equivale a acordar aos berros no meio da noite. Essas pessoas podem até aprender a se controlar. Mas é muito mais difícil.
A analogia aqui é com dois músicos. Um aprendeu a tocar desde pequeno e teve anos de prática. O outro só começou a aprender o instrumento quando já era grande e a base de sustentação de sua habilidade é mais fraca. “Os governos têm a obrigação de orientar famílias em situação vulnerável”, afirma Charles Nelson, professor de neurociência em Harvard que ficou mundialmente famoso com um estudo sobre crianças de orfanatos na Romênia.
Desassistidas, tiveram o desenvolvimento físico e mental totalmente afetados. As evidências acumuladas até agora por psicólogos, com suas observações, e por cientistas, com suas experiências, é de que a atenção é crucial para as crianças — e isso não vai mudar. Mas as pesquisas que têm revelado como o ambiente afeta a manifestação dos genes e o desenvolvimento do cérebro podem estar próximas de um novo salto.
Até recentemente, quem sofria de uma doença tinha à disposição um remédio. Hoje já existem medicamentos específicos para grupos de pessoas com determinadas características genéticas. “Não chegamos lá ainda. Mas é possível que um dia possamos fazer uma análise da carga genética de crianças em situações de risco e pensar em diferentes tipos de programas sociais para engajar os cuidadores”, diz Shonkoff.

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Ve​ículo: Revista Exame

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